INDEPENDENCIA OU MORTE
Quando conversa sobre drogas com adolescentes, a psicanalista
paulistana Lídia Aratangy costuma falar de tudo, menos das substâncias
químicas. Ela não se detém na descrição dos males do álcool, da maconha
ou da cocaína. Prefere, antes, discutir um tema que considera caro a
qualquer ser humano: a liberdade de escolha. “É um paradoxo difícil de
resolver. As drogas surgem na vida de um indivíduo como concretização do
desejo de liberdade, mas desembocam em escravidão”, afirma. Essa
“escravidão” pode acontecer depois de dez anos de consumo indiscriminado
de álcool ou um mês de uso de crack.
No fundo, diz a terapeuta, a dependência de qualquer substância
prejudicial – mas aparentemente prazerosa – revela uma inabilidade em
lidar com a frustração e a renúncia.
A postura de Lídia está afinada com uma nova conduta no tratamento de
dependentes. Esse método, que ganha cada vez mais força na Europa,
discute o uso indevido das substâncias químicas e a relação de
dependência que se estabelece com elas. A droga
fica em segundo plano. As terapias tradicionais, ao contrário, buscam a
abstinência a qualquer custo. Essas terapias, ainda dominantes, pregam o
afastamento total das drogas e a chamada “tolerância zero” – como o
tratamento mostrado no filme Trainspotting, em que o dependente
é trancado num quarto até que seu organismo se “desintoxique”.
Um exemplo das novas propostas, no Brasil, é o Programa de Orientação
e Assistência ao Dependente (Proad), ligado à Universidade Federal de
São Paulo, a Unifesp, cujo modelo de prevenção dá ênfase à qualidade de
vida. “Em vez de campanhas para evitar que um adolescente use drogas,
procuramos reforçar sua auto-estima e a satisfação com seu dia-a-dia
para que ele, caso tenha contato com as drogas, não se torne um
dependente”, diz o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, coordenador do
programa.
Antes vista como um problema de polícia, a dependência de substâncias
químicas passou a ser considerada uma doença crônica, que pressupõe
três fatores: personalidade vulnerável, disponibilidade da doga
e contexto favorável ao uso. “Hoje se entende que a dependência é um
processo complexo, que envolve alterações neurofisiológicas, componentes
psicológicos e também sociais”, afirma a médica Maristela Monteiro, da
Organização Mundial de Sáude.
Esse é um dos motivos que levaram os psiquiatras a evitar o uso da
palavra “vício” – sinônimo de defeito, fraqueza. Pode parecer uma
questão semântica, mas representa uma tentativa de diminuir o
preconceito que ainda cerca o tema. Há quem pense que usar cocaína ou
abusar da bebida é decorrência de falha de caráter. Não é.
Dependentes todos nós somos. Ao respirar pela primeira vez, quando
nasce, o ser humano torna-se dependente de oxigênio. Sem ele, seria
impossível viabilizar diversas reações químicas no organismo
e colocar o cérebro em atividade. Somos dependentes de água, de comida,
de afeto. E também do prazer, uma sensação essencial para a preservação
do indivíduo e da espécie.
O problema está em buscar maneiras artificiais de sentir esse prazer,
estimulando o cérebro a criar sensações de felicidade. Eis a chave da
dependência que leva às drogas. Começa com o uso recreativo de alguma
substância que traga a sensação de bem-estar. Depois, enganado pela
falsa idéia de que detém o controle sobre a situação, o indivíduo passa
ao uso abusivo. “A droga
altera o circuito cerebral do prazer e cria um apetite específico por
aquela substância. A pessoa vai sentir uma vontade intensa de usá-la
cada vez mais”, diz o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, da Unidade de
Pesquisas em Álcool e Drogas, na Unifesp.
“A partir daí, você não tem mais uma relação de autonomia com a droga.
Em vez de mandar nela, ela é que manda em você”, afirma a psiquiatra
Florence Kerr Corrêa, da Universidade Estadual Paulista, em Botucatu.
Sua rotina e seus compromissos sociais são pautados pela necessidade que
tem de consumir a droga.
É por isso que a prevenção de recaídas – um tipo de terapia adotada nos
ambulatórios dos hospitais – insiste em quebrar e em evitar qualquer
ambiente que traga a lembrança do uso da droga.
“A dependência pode ser um transtorno do controle dos impulsos”, diz
Dartiu, do Proad. Ao que se sabe, esse transtorno está relacionado a
alterações no comportamento de duas substâncias cerebrais: a dopamina,
ligada às sensações de prazer, e a serotonina, que regula as emoções. As
drogas modificariam o funcionamento e a quantidade dessas substâncias
no cérebro. Talvez a genética também possa influenciar. “Há alguns
fatores, provavelmente herdados, que fazem com que o indivíduo seja mais
ou menos vulnerável a uma droga”, afirma Florence.
Para o psiquiatra Eliseu Labigalini Júnior, da Unifesp, o dependente
vai perseguir sempre a sensação que provou nas primeiras vezes em que
usou a droga.
“Trata-se de uma experiência que a pessoa não vai conseguir repetir”,
diz. Eliseu participa do Programa de Redução de Danos, criado pelo
Proad, que prevê diminuir ao máximo os prejuízos que uma droga traz ao organismo, mesmo que não seja possível alcançar a abstinência total. Esse programa produziu um estudo em 1999 sobre o uso da maconha na redução da dependência de crack. Eliseu acompanhou 25 dependentes que, espontaneamente, usavam maconha como auxílio para controlar a sindorme de absinência do crack. “Aos poucos, conseguimos não apenas que os pacientes largassem o crack, como também que diminuíssem ou abandonassem o uso da maconha”, diz Eliseu. A idéia agora é verificar se a maconha pode auxiliar na abordagem da dependência de drogas mais fortes, como cocaína.
Outra pesquisa realizada por Eliseu investigou as propriedades
terapêuticas da ayahuasca – o milenar chá dos índios amazônicos,
conhecido também como Santo Daime ou Vegetal. Em 1996, ele avaliou um
grupo de 15 ex-alcoólatras que se livraram da dependência do álcool
semanas depois de começar a tomar o chá. “O que provavelmente fez com
que esses indivíduos abandonassem o consumo de álcool foi a experiência
profunda de entrar em contato com o lado escuro deles mesmos e com o
próprio inconsciente, facilitada pela ayahuasca e pelo ritual religioso
que a envolve”, afirma.
Outro alucinógeno usado em rituais tribais vem despertando o interesse dos pesquisadores: a iboga, planta nativa da África Central. Acredita-se que a ibogaína,
princípio ativo extraído da raiz da planta, diminua os sintomas de
abstinência e elimine o apetite por drogas. O caso mais conhecido é do
pesquisador americano Howard Lotsof, que se livrou da dependência de
heroína 30 horas depois de ingerir ibogaína. Ele administrou a substância a sete amigos dependentes e, em cinco casos, o resultado foi o mesmo.
Lotsof descreveu e patenteou o uso da ibogaiína
no tratamento de dependências químicas. Mas a comunidade científica
recomenda cautela. Foram registrados casos de morte súbita com o uso do
alucinógeno. “A ibogaína
não foi testada sob condições controladas para comprovarmos se funciona
ou não. As evidências de sua eficácia são ainda muito frágeis”, diz o
psiquiatra Frank Vocci, diretor da Divisão de Desenvolvimento de
Medicamentos, do Instituto Nacional para o Abuso de Drogas, nos Estados
Unidos.
Por enquanto, a medicação usada no controle da sindrome de abstinência é a aprovada pelos órgãos de saúde
internacionais. Estão sendo desenvolvidas vacinas para a nicotina e a
cocaína. Mas os remédios não substituem – e nem é essa a intenção –
tratamentos dirigidos ao lado emocional ou espiritual do dependente. Há
quem busque, com sucesso, a acupuntura – que ajuda a recuperar o
equilíbrio das emoções – como terapia auxiliar nas crises de
abstinência.
Na opinião do psiquiatra paulista Wilson Gonzaga, uma experiência
espiritual é fundamental para que o dependente queira, de fato, mudar de
vida. “Costumo dizer que a embriaguez provocada pelas drogas e a
transcendência são andares de um mesmo prédio; só que uma é o subsolo e a
outra, a cobertura.” O mesmo vale para qualquer atividade que coloque o
indivíduo em contato com o “sagrado”, diz ele.
Depois de trabalhar em clínicas particulares e em órgãos de saúde
pública, Wilson se mudou com a mulher para um sítio nos arredores de
São Paulo e decidiu abrigar os pacientes em sua própria casa.
Atualmente, trata oito dependentes. “Recriamos, dessa maneira, um
ambiente familiar”, afirma. Os hóspedes – como são chamados – têm
atividades diárias, que vão desde trabalhar na horta até cuidar dos
cavalos, sempre em contato com a natureza. Como terapia auxiliar, Wilson
propõe um trabalho voluntário aos dependentes que recebem alta. Ele os
encaminha para a Associação Beneficente Luz de Salomão, localizada na
região central de São Paulo, que atende moradores de rua. “Trabalhar em
prol do outro é um grande remédio para a auto-estima. A pessoa começa a
se valorizar e se sente muito bem com isso.”
É por isso que tratamentos psicológicos são cada vez mais
recomendados na recuperação de dependentes. Em grupo ou individualmente,
estimulam o paciente a identificar as motivações internas que o levaram
a uma relação doentia com as drogas ou com algum padrão de
comportamento em especial. Isso mesmo: a comunidade médica começa a
admitir que o ser humano também pode se tornar dependente de hábitos
como fazer sexo, assistir TV ou jogar. “Nas dependências não-químicas,
ainda não podemos falar com segurança em alterações neuroquímicas. Mas o
aspecto psicológico é bem semelhante aos casos de dependencia quimica”, afirma o psiquiatra Aderbal Vieira Filho, responsável pelo ambulatório de sexo patológico do Proad.
Os workaholics – sujeitos que vivem em função do trabalho – são um
exemplo de dependência não-química. O cotidiano deles revela os mesmos
sintomas de um dependente de crack:
conflitos de auto-estima, impulsividade e tentativa de sanar
artificialmente sentimentos como carência e frustração. No entanto, como
trabalhar em excesso é um comportamento socialmente aceito, essa
dependência passa batida – ao contrário do sujeito que já perdeu a casa e
as calças por conta da jogatina desenfreada. “O limite entre um hábito
normal e aceitável e o que é uma dependência muitas vezes não é claro”,
afirma o psiquiatra Dartiu. “A dependência se caracteriza como perda de
controle. Perder o controle uma vez na vida acontece com todo mundo.
Mas, quando isso se torna uma rotina e o indivíduo começa a se
prejudicar, é uma dependência que precisa ser tratada.”
Veja o caso de Luana (o nome é fictício, a história não), uma
secretária paulistana de 32 anos. Casada e mãe de dois filhos, ela não
via hora nem lugar para fazer sexo. “Conhecia alguém interessante e
fazia de tudo para conquistá-lo”, diz. Saía do serviço para o almoço e
passava a tarde no motel. Inventava reuniões para chegar tarde em casa.
Enfim: começou a faltar ao trabalho e a mentir para a família.
“Constatei que estava com um problema quando essa fissura por sexo
passou a me prejudicar”, diz. “Na hora, era tesão e pronto. Depois, me
perguntava por que havia feito aquilo.” Luana buscou o Proad e hoje,
depois de um ano de terapia, se sente livre da dependência.
Além dos ambulatórios especializados, uma saída para os dependentes
não-químicos são os grupos de ajuda mútua, popularmente conhecidos como
grupos de anônimos. O primeiro de todos foi o Alcoólicos Anônimos,
fundado em 1935 por dois alcoolistas da cidade de Akron, nos Estados
Unidos. A terapia consiste em 12 passos que se deve seguir na busca pela
recuperação. Não há nenhum tipo de acompanhamento profissional. São
apenas dependentes – de álcool, cigarro,
sexo, drogas, comida, jogo ou afeto, conforme cada irmandade – contando
aos seus pares como venceram, ou procuram vencer, sua compulsão. “Os
grupos de anônimos são eficazes porque logo no primeiro passo
estabelecem que o indivíduo deve reconhecer que sua vida está
ingovernável, que ele perdeu o controle e precisa buscar ajuda”, diz o
psicólogo paulista Vicente Parisi.
Fonte: SUPER ABRIL
Comentário: A dependência é um assunto tão importante hoje que a Organização Mundial de Saúde decretou 2001 como o ano da saúde
mental. Ninguém está livre de virar um dependente.Estamos vivendo um tempo em
que todos acham que se afundar em drogas bebidas torna uma pessoa descolada, bakana e afins. Por isso, é tão
fácil cair na frustração e na tentação de ingerir drogas licitas e ilicitas ”.
Não importa qual a terapia escolhida para vencer uma dependência, a
participação da família do dependente faz a diferença. Saía do buraco, é sempre tempo de gritar por
independência. E refletir sobre o verso do poeta Manuel Bandeira
(1886-1968): “Uns tomam éter, outros cocaína. Eu já tomei tristeza, hoje
tomo alegria.”
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